4. Intenção

 

Processo de Intenção

É visível neste projeto que o percurso esteve sempre influenciado por um conceito inerente ao que considero ser uma palavra muito importante na minha vida pessoal, profissional e académica, a empatia. Contudo, creio que ainda não escrevi sobre como cheguei a esta "necessidade" de investigar sobre esse conceito-palavra com múltiplas aplicações e visualizações. Acho que esta é a altura ideal para falar do porquê e do para quê e, para tal, acho que vou utilizar um método que sempre adorei desde criança, contar uma estória. 

Era uma vez...

Uma pequena menina, ainda que pequena fosse só a sua idade (esta pequena quase sempre teve dois palmos a mais em altura e um em largura que os colegas de turma, mas isto é só um facto que justifica uma sensação de inadequação que fica para explorar noutras estórias), cuja família residia no interior centro de um país pequeno, ainda que, também, de pequeno fosse só a sua área geográfica. 

Em criança era muito raro existir em mais do que três lugares que visitava com frequência, para além da sua casa: a casa dos tios, na cidade que estava sempre nublada mas cheia de pintura e cerâmica e tudo o que era artístico e interessante; a casa dos avós na zona baixa da sua aldeia, do café, da taberna e do campo, que estava sempre cheia de gente, conversas, cheiros, fumo (ainda era permitido na altura) e barulhos de diferentes pessoas e; a casa dos avós da terra do outro lado do Tejo, onde vivia a pessoa mais sábia da família (Conceição Padeira bisavó full time - o segundo nome descreve bem a sua experiência de vida), onde se fizéssemos pouco barulho podíamos ouvir as arcas da mercearia Paiva a apitar por baixo da sala e da varanda os pratos do Café Central a serem lavados pela Dona Ivone mas, talvez, o mais interessante nesse local fosse o conceito de que, durante duas semanas por ano, se porventura o recenseamento por lá calhasse, poder-se-ia averiguar que o número de habitantes equinos superava o de pessoas. Pode parecer que estes três locais não têm forma nenhuma de se relacionar, mas há um fator talvez mais do que pessoal e coincidente (potencialmente cultural), que se repetia vezes e vezes: Comer e ouvir os adultos a contar estórias. 

- "Ai avó, conta lá aquela vez em que fostes ao Café Central ajudar no Casamento da Dona Alice",
- "Naquele ano que fomos ao Politeama ver o Amália...",
- "Lembraste do Senhor Pedro? Aquele que estive no casamento. Esse casamento, meu deus! Olha filha, estivemos quase três meses a pregar cadeiras e o teu tio trouxe um paraquedas lá do quartel para fazer uma zona de sombra. Nessa altura era assim...",
- "Ó avó, mas tu nasceste quando? 1920. E tu ias à escola? Sim, claro. Mas só aprendi até à quarta classe, porque nessa altura íamos cedo para o campo e a professora só nos ajudava se lhe levássemos um garrafão de vinho. Era um bocadinho difícil",
- "Tia, quem fez este quadro ali da sala? Olha foi um pintor chamado Edward Hopper. A tia quando esteve a estudar na Universidade ouviu falar muito dele e por acaso tenho uma estória engraçada sobre..." 

É incrível como a banalidade destes acontecimentos pode criar marcas no percurso de uma pessoa, ainda que de forma inconsciente. Crescer rodeado de conversas, pessoas, experiências, caminhos de cá para lá e de lá para cá, de um "ora vêm cá dar um beijinho nesta senhora" ou "já cumprimentaste o senhor António" ou "aguenta aqui o café enquanto a avó vai à Galinha Gorda", não é fácil para um introvertido, nem fácil quando chegam as hormonas da adolescência e o corpo obriga-nos a procurar formas de rebelião, ainda que, devo dizer muito ineficazes. Há qualquer coisa que fica, marca e está embrulhada e guardada no fundo de uma gaveta aos nossos pés. E, tal como na noite de Natal, só a chegamos a desembrulhar num dia e hora específicos para que, depois, as possamos usar, brincar e aprender. Aprender a apreciar esses presentes é um percurso difícil, porque nem sempre a criança está disposta a esperar ou ouvir, ou o encanto de outros objetos cintilantes parece mais tentador, ou a idade torna-a "demasiado ´fixe´ para estar ali a ouvir com atenção, que seca...". A criança desta estória, felizmente teve acesso a muitos embrulhos, cada um deles preciosamente colocado na sua gaveta mas, infelizmente, contemplou a chegada dessa necessidade de apreciação demasiado cedo. Os dias em que, tal como todas as crianças, alguns presentes de algumas pessoas deixam de vir ter com elas, criam uma sensação de falta, de vazio monumental. 

É neste momento que é importante darmos conta de que temos uma obrigação de continuar o legado, porque se por um lado as hormonas da adolescência nos fazem querer "desligar" destas experiências, por outro lado apercebermo-nos ou sabermos de onde vimos, quem faz parte da nossa estória, quem fez parte de outras estórias, locais, coisas, pessoas, momentos tornam-nos nós, tornam-nos mais abertos ao que se passa ao nosso lado e ao quanto nós estamos todos ligados. Não só à nossa família imediata mas, também, à família que vamos construindo e aos amigos que vamos adquirindo e às estórias que vamos ouvindo e, mais tarde, contando. Se isto não for a fórmula de nos tornarmos pessoas mais abertas, pacientes e ponderadas, creio que a atual criança-adulta desta estória vai tentar provar-te o contrário. 

Moral da estória: Era vez uma pequena menina, que agora já é grande, curiosamente não em altura mas em idade, e que vive na casa que era dos seus avós do outro lado do Tejo. Em adulta é muito raro existir só num lugar, porque, além da sua casa, aprendeu que estar com outras pessoas (ainda que à distância), partilhar momentos, ouvir, aprender e participar em estórias é tudo aquilo que acredita ser parte de uma missão importante. Pode parecer que isto é tudo um pouco rebuscado mas, quando ligamos a televisão e estamos 24h por dia a ouvir sobre a falta de humanidade de uns com os outros e a ver as consequências destrutivas da desconexão e falta de empatia de hoje em dia, talvez não faça mal tentar que se façam ouvir algumas estórias.

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